Wednesday, October 5, 2011

Leitura de um trajeto educativo: Meu memorial.

    Agradeço aqueles que, carinhosamente, me puseram a pensar sobre minha formação contínua e origem social, permitindo-me registrar memórias guardadas no âmago das lembranças, que vivem em mim, assim como parte de mim ainda vive delas.

Formar-se não é instruir-se: é antes de mais, reflectir, pensar numa experiência vivida [...] formar-se é aprender a construir uma distância face a sua própria experiência de vida, é aprender a contá-la através de palavras [...].
Rémy Hess (1985)

    No momento final do penúltimo ano de graduação em Psicologia, foi dado a cada um de nós, alunos, a deliciosa tarefa de investigar sobre nossa própria formação. Colocaram-nos a escrever sobre as experiências que nos acompanharam durante o percurso educativo. Quem sabe, nossos mestres estivessem, como Rémy Hess sugere, na tentativa de nos ensinar “a contá-la através de palavras” e assim dar consistência ao conhecimento científico por eles apresentado, através da simples experiência de vida de cada um de nós.

Formação contínua e origem social

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. 
Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo - traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.
Até criar a verdade do que me aconteceu. [...]
Clarice Lispector (1996, p.15)

     Certamente meu percurso até aqui sofreu grande influência social, assim como nossa formação pessoal sofre constante influência do meio em que vivemos. Um conjunto de personalidades, acontecimentos e estruturas físicas que – de acordo com meu olhar, estado emocional e disponibilidade – me ajudaram a formar conceitos e percepções de mundo. Minha família e suas crenças, minha cidade, meu bairro, as escolas que frequentei, os lugares onde trabalhei e todas as pessoas e situações pelas quais passei trouxeram-me à realidade de hoje. Assim também, o caminho que percorro durante a graduação em Psicologia – seja dentro do campus acadêmico ou fora dele (palestras, mídia, bibliotecas, estágios, congressos, etc.) - influenciam minhas escolhas e me ajudam a traçar novos caminhos.
O sistema de aprendizagem nos oferece modelos preestabelecidos para o caminho do conhecimento na vida acadêmica e, dentro destas possibilidades, estabelece uma relação com o aprendiz. Apesar do modelo padrão e das similaridades possíveis, o resultado desta interação é sempre novo, único e, para mim, difícil de descrever. Acredito que, se tratando de Psicologia, com suas várias teorias de estudo e abordagens possíveis de trabalho acerca do mesmo assunto, as que mais farão sentido para o profissional serão aquelas que mais se identificarem com sua história de vida, crenças ou forma de se relacionar com o mundo.
Fenomenologia, Psicologia Sócio Histórica e Psicanálise! Foram tantas opções que me atraíram de alguma forma, mas que ao mesmo tempo divergem muito entre si. Perceber qual fazia mais sentido para mim foi angustiante. Foi difícil escolher, ter que ter certeza sobre algo para atuar com confiança quando, a cada aula assistida, me sentia atraída pela paixão que o professor, inevitavelmente, transmitia pela sua respectiva orientação teórica. Como saber distinguir o que é do outro e o que é meu?! Árdua, constante e eterna tarefa do psicólogo que já começa pela difícil escolha da abordagem teórica.
Foi então que, buscando responder a pergunta sobre em qual momento da jornada, quais acontecimentos, personalidades ou relações me levaram a buscar determinados conhecimentos na universidade e no mundo a minha volta, percebi que se tratava de tudo, pois tudo em minha vida compõe minhas escolhas. Se o nascimento e toda a fase em que nos apropriamos do mundo, estabelecendo uma relação com este, marcam a forma de nos relacionarmos, consequentemente influenciam nas escolhas que fazemos.
Por esse motivo, quanto à forma com a qual concebo a universidade e os conteúdos transmitidos, caberia dizer que só podemos ver e conhecer o mundo a nossa volta a partir do lugar em que estamos, lugar no qual chegamos através de caminhos percorridos anteriormente. Qualquer que seja o assunto a ser estudado, temos como referência alguns conhecimentos já acumulados. Estudando aspectos humanos, então, é praticamente inevitável não fazer referência a nossas próprias experiências. Porém, ao mesmo tempo em que me ocorre muita coisa a dizer, tenho dificuldade em expor o que penso.
Foi gratificante poder, durante todo o curso, fazer relações comigo mesma, minha origem, cultura e história de vida. Tão gratificante quanto me perceber neste processo, tendendo a tomar determinadas posições em relação aos conceitos discutidos. O que não significa que não serei flexível nessas posições tomadas, pois há de se considerar a flexibilidade do homem e suas constantes mudanças. De qualquer forma, dentre tantas coisas que poderiam me ocorrer, lembrei-me de um pedaço interessante da minha história e é este que aqui segue:
Na cidade de Diadema/SP, final dos anos 80, quando ainda me encontrava na infância, as relações sociais que se estabeleciam ao meu redor eram intensas e sobressaíam-me aos olhos, além da conta. No início, apenas aglomerados de gente falando, discutindo, sorrindo, se exaltando, apaziguando... Anos depois, descobri que tinham nomes como grupo de conselho, comunidade e assembléia. Esses termos foram se incorporando à minha realidade e seus significados ao modo de ver as relações à minha volta.
Assuntos de interesse incomum eram compartilhados, discutidos e problematizados, buscando soluções de comum acordo. Era a vida em comunidade, frequentada e vivida ativamente por meus pais. As reuniões eram diversificadas e semanais, e muitas vezes minha casa era sede de tais reuniões. Sempre convivi com as ações políticas não partidárias do meu pai; a luta, a perseverança e o aconchego solidário da minha mãe, assim como grupos religiosos – acreditem – encantadoramente democráticos! Na época eu podia não entender a magnitude dos fatos ou a riqueza das relações, mas com o tempo descobri que aquele era um movimento característico daquele grupo, assim como as atividades por eles organizadas. A compra comunitária era uma delas.
Essa “compra comunitária” havia sido organizada por um comitê de bairro que detectou dificuldades em comum de famílias para conseguir comprar alimentos que durassem o mês todo. Ao invés de pagarem o preço que os supermercados pediam pelos alimentos, as pessoas formavam comitês. Eles discutiam sobre o que comprar e o quanto cada família precisaria. Havia pesquisa de fornecedores – compravam direto dos produtores - e depois se dirigiam até a prefeitura ou assembléias na câmara para pedir um caminhão que levasse os mantimentos ao local e data marcada. Com tantos eleitores envolvidos, é claro que prefeito e vereadores sempre autorizavam o uso do caminhão público. Os comitês eram muito bem organizados e supervisionados por todos. O dinheiro era contado e no dia da entrega fazia-se a pesagem dos alimentos em uma grande balança vermelha de espelho na garagem da minha casa. Adorava aquela balança vermelha e todas aquelas crianças correndo pela casa. A grande maioria dos coordenadores do projeto, assim como meu pai, não tinha nem o ensino fundamental completo, o que não os impedia de serem grandes visionários, pensadores que não ficavam apenas no idealismo, arregaçavam as mangas e lutavam pela sobrevivência com muita organização e companheirismo.
Na graduação esses momentos me ocorreram com detalhes muitas vezes ao ler um texto ou ao assistir a uma aula. Em especial, poderia falar sobre as aulas de Psicologia Social e Filosofia. Querer fazer parte do sistema, contribuindo para o desenvolvimento da sociedade onde vivemos, tentando adequar o que somos com o que gostaríamos de ser e produzir, são questões que esbarram em limitações e sentimentos interligadas ao fato de que precisamos nos sentir aceitos pelo outro e inseridos na sociedade. Assim, quando se encontra apoio no grupo social, e de acordo com as possibilidades e recursos, cada um poderá buscar sua forma de contribuição, atuando dentro de modelos preestabelecidos socialmente. Mas as formas de viver esses modelos estabelecidos terão muito a ver com os recursos disponíveis e os valores internalizados. E era isso que acontecia a minha volta.
As ações realizadas pelos grupos, aos quais meus pais pertenciam, tinham muito a ver com a forma com que estas pessoas concebiam o convívio em comunidade. Na maioria, eram pessoas migrantes de outros estados, cidades pequenas, onde as relações eram estreitas e a sobrevivência dependia da cooperação do vizinho. Daí, talvez, a explicação para aquelas ações que vinham na contra mão do sistema individualista, que a vida nas grandes metrópoles nos leva a ter. Por outro lado, também se relacionava com o momento político no qual a região do Grande ABCD/SP se encontrava na época. Muitas coisas, infelizmente, foram se perdendo com o tempo, mas deixaram suas marcas!
Enfim, o que eu realmente queria para minha formação estava ali! Não existe segredo a ser passado quando se trata do funcionamento das relações humanas. O que eu procurava, na verdade, era o caminho para se pensar no sentido de cada relação.
Busquei na academia respostas sobre a origem das coisas. Pensar na origem das pessoas com as quais me relaciono, por exemplo, me ajudou a entender um pouco mais sobre a forma como elas se comportam, o que não fez de mim uma magistral, mas com certeza um pouco melhor que antes. Talvez este seja o modesto resultado que devemos esperar ao final de um processo. Compreender a complexidade do universo que nos cerca, ajuda-nos a entender a diversidade de respostas possíveis para uma mesma problemática e a impossibilidade de verdades imutáveis. Verdades que talvez tenham me atraído até os bancos da universidade. Entretanto, acabei por encontrar muito mais do que verdades, encontrei a própria busca - a busca sobre como contribuir com a vida em sociedade produzindo algo que me mantenha ativa, feliz e realizada.
É difícil falar sobre todo esse processo, muito especial, que passo na graduação, pois se trata de um caminho lento de muitos momentos e descobertas. Mas, o aprendizado mais precioso – levando-se em consideração o modelo de ensino que temos hoje na educação pública do Brasil – foi saber que posso e devo questionar o que me é transmitido na academia ou em qualquer lugar. Conhecer algo, refletir sobre ele e questioná-lo fazem parte da apropriação do que nos foi transmitido. Coisas que já aprendia na convivência com meus pais - mesmo que eles não se dessem conta disso - vendo suas formas de lidar com os recursos que dispunham, não aceitando apenas o que lhes ofereciam, mas buscando as possibilidades que a vida em comunidade poderia nos proporcionar.
Foi marcante descobrir que as respostas estiveram sempre lá, encontram-se em meio ao senso comum. O conhecimento científico cria meios de extraí-las, buscando-as a partir do que é empírico e real. A forma científica de se produzir conhecimento é apenas um método eficiente de filtrar e organizar algumas verdades que estão com o povo. A educação formal organiza a comunicação do presente com o passado e da possibilidade de partirmos do que já foi descoberto. Há uma institucionalização na forma de se adquirir conhecimento que me parece necessária, mas que ao mesmo tempo não deve nos aprisionar. E isso fica claro quando a comunidade científica reconhece e valoriza o saber do senso comum. Senso comum de onde vim, o qual me forneceu precondições para pensar em tudo que me foi colocado até aqui.

Cléria Mariano da Silva – Agosto de 2010

Monday, October 3, 2011

Pedacinho de história

Creio haver momentos que valem mais do que anos vividos... Quem sabe vivamos tais anos apenas pela avidez dos momentos. Uma possibilidade que nos basta.


Não que vivamos para eles, como escravos. Pois, mais do que momentos, somos formados pela história!

Porém, pedacinhos de histórias se misturam deixando marcas na história do outro... Dá tantas voltas que até parece ser outra vida... E a história continua...

Mas não há tempo para tanto. Por isso, ler. Ler cenas da vida... “A poesia do dia-a-dia”, como talvez dissesse Jesse. Mesmo que ela nunca nos tenha acontecido concretamente.

E encanta a simples possibilidade de viajar nas possibilidades... Sentir a realidade através do que nunca aconteceu.
Poderia viver assim. Saída de emergência.

Como pode ser tão forte a presença do que não existe?! Não há como. E por isso o encanto! Tal presença deve estar na alma, no inconsciente... Perdido em algum lugar onde aguarda ser acessado.

Interessante como o externo - escritores, pintores, músicos, diretores e todo o tipo de arte - pode proporcionar vida a nossa existência. Como nos colocam em contato com ela novamente!
No entanto, entenda: não se tratar de uma vivência passiva, como parece... O ingresso é a “sensibilidade para”.

O quanto sua sensibilidade te permite tirar de uma cena? O quanto um pedacinho de história do outro te faz viver a sua história?!


Cléria Mariano

Friday, July 31, 2009

Natal na barca - Lygia Fagundes Telles


Olá Andrea!

Não conheço...Acho que podemos começar por ele!
Encontrei-o disponível na net. O link é:

http://www.releituras.com/lftelles_natal.asp

Se não conseguirem clicar nele, copiem e colem no navegador.

Beijos

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain - Jean-Pierre Jeunet


O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
Dirigido por: Jean-Pierre Jeunet

Adoro a forma como o filme mostra detalhes da vida!!
O gostoso dele é a devida relevância que dá a coisas comumente tratadas como irrelevantes. Como, por exemplo, colocar amoras nas pontas dos dedos só para depois enfia-las uma a uma na boca! AH ah Ou sentir prazer em enfiar as mãos num saco cheio de grãos!

A protagonista indica a felicidade das pequenas coisas, sem ser clichê. Mostra que não precisamos de muito para sermos felizes, sem ignorar as fatalidades, inevitáveis, da vida.

Amelie não se deixa levar por paradigmas, sem precisar ser rebelde. Ela encontra seus próprios meios de ser feliz, não se prende ao habitual, mas, valoriza atitudes rotineiras...promove a individualidade passando longe do individualismo!

O filme é engraçado, sensível e continuaria sendo romântico mesmo que não houvesse um “mocinho” na história.

Cléria Mariano

Thursday, July 30, 2009

Para começar


Sabe quando você lê algo interessante ou assiste a um bom filme e se apega aos personagens ou simplesmente se intriga com a história e quer compartilhar isso com alguém?
Filme, música ou escrita (livros, contos, poesias).
Poderíamos começar com um conto para aquecer...ou um filme!

Tuesday, July 28, 2009

Citando Leonardo Boff


Todo ponto de vista é a vista de um ponto (L. Boff)

Ler significa reler e comprender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.

Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão do mundo. Isso faz da leitura sempre uma releitura.

A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender, é essencial conhecer o lugar social de quem olha. Vale dizer: como alguém vive, com quem convive, que experiências tem, em que trabalha, que desejos alimenta, como assume os dramas da vida e da morte e que esperanças o animam. Isso faz da compreensão sempre uma interpretação.

Sendo assim, fica evidente que cada leitor é co-autor. Porque cada um lê e relê com os olhos que tem. Porque compreende e interpreta a partir do mundo que habita.

Leonardo Boff, A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana, Petrópolis: Vozes, 1997.

Bem-vindo a bordo!


Histórias contadas ou lidas têm o poder de atingir nosso âmago, fazendo com que ultrapassemos os limites do tempo e do espaço. Nada nos impede em nossa imaginação, não podemos ser detidos e, tampouco, há que se pagar pela viagem instantânea proporcionada pela leitura. Histórias serão lembradas a partir de símbolos impressos em folhas inanimadas; antes brancas e lisas, que transformam-se aos olhos do leitor.
Desta forma, livros guardam símbolos, alegorias, fantasias a serem decifradas. Seus pontos e pingos, cuidadosamente colocados, querem levar uma mensagem a todos. Mas, “todos” são muitos e variados, cada qual o entenderá, modificando-o, segundo sua própria vivência, ou segundo seus desejos.

Quando, da leitura, sentimos a alegria ou a dor do existir, ocorre a transferência do passado ao presente, do eu para o outro e do outro para o eu.

Lembranças guardadas pelo leitor teimam em modificar sentidos de símbolos postos - mas não impostos-, que alguém escreveu a partir da própria experiência. Imagens mentais se misturam, bordando na viagem da história lida o inevitável retorno à história de si mesmo.
Assim, cada qual poderá ler o que lhe é particular em escritos alheios e fazer-lhes citações deliciosamente desarrazoadas, dando-lhes novas e variadas formas. Certamente, vindos de conteúdos até então guardados em espaços inconscientes.

Estímulos externos podem nos dar passagem para longe, no tempo e no espaço, mas nunca nos levarão do lugar que nos é essencialmente particular: o eu e a inesgotável inconsciência existencial.
Impregnados de nós mesmos, impregnamos o mundo com nossa existência e podemos nos descobrir ao descobrir o que, quase sempre, parece ser tão externo.

E, tão bom quanto viajar é poder relembrar e compartilhar as experiências.

Cléria Mariano